sábado, 3 de dezembro de 2011

Pessoa - Soares - Desassossego - [«A vida deve ser...»]

TUDO QUANTO de desagradável nos sucede na vida - figuras ridículas que fazemos. maus gestos que temos, lapsos em que caímos de qulaquer das virtudes - deve ser considerado como meros acidentes externos, impotentes para atingir a substância da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou calos, da vida, coisas que nos incomodam mas são externas ainda que nossas, ou que só tem que sofrer a nossa existência orgânica ou que preocupar-se o que há de vital em nós.
Quando atingimos esta atitude, que é, em outro modo, a dos místicos, estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o que em nós é externo, é outrem, é o contrário de nós e por isso o nosso inimigo.
Disse Horácio, falando do varão justo, que ficaria impávido ainda que em torno dele ruísse o mundo. A imagem é absurda, justo o seu sentido. Ainda que em torno de nós rua o que fingimos que somos, porque coexistimos, devemos ficar impávidos - não porqe sejamos justos, mas porque somos nós, e sermos nós é nada ter que ver com essas coisas externas que ruem, ainda que ruam sobre o que para elas somos.
A vida deve ser, para os melhores, um sonho que se recusa a confrontos. [...]

Livro do desassossego - composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Ed: Richard Zenith. Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, pp. 162 - 163