sábado, 2 de junho de 2012

Fogo sobre a árvore circulatória

[cerca de 200 páginas em 73 curtos, concisos, capítulos, é um dos que estão em leitura - já referido em letras escalfadas]

Recorte:
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Todos se recolheram, a noite ia grossa, o vento afrouxava as janelas. As telhas vibravam, num mínimo gesto a tempestade nasceria dentro da casa. Os pais dormiam em um quarto. Nico, Júlia e Antônio em outro, na mesma cama, aninhados em forma de embrião.
Um gato esticou as pernas, as paredes se retesaram. A pressão do ar achatou os corpos contra o colchão, a casa inteira se acendeu e apagou, uma lâmpada no meio do vale. O trovão soou comprido até alcançar o lado oposto da serra. Debaixo da construção a terra, de carga negativa, recebeu o raio positivo de uma nuvem vertical. As cargas invisíveis se encontraram na casa dos Malaquias.
O coração do casal fazia a sístole, momento em que a aorta se fecha. Com a via contraída, a descarga não pôde atravessá-los e aterrar-se. Na passa gem do raio, pai e mãe inspiraram, o músculo cardíaco recebeu o abalo sem escoamento. O clarão aqueceu o sangue em níveis solares e pôs-se a queimar toda a árvore circulatória. Um incêndio interno que fez o coração, cavalo que corre por si, terminar a corrida em Donana e Adolfo.
Nas crianças, nos três, o coração fazia a diástole, a via expressa estava aberta. O vaso dilatado não perturbou o curso da eletricidade e o raio seguiu pelo funil da aorta. Sem afetar o órgão, os três tiveram queimaduras ínfimas, imperceptíveis.
Nico acordou e não saiu da posição, tenso, esperou o dia. A chuva não impediu que a noite clareasse, o galo ficou mudo. No quarto dos pais o sol entrou pelas telhas destruídas, o casal estava enrijecido sobre a cama, mas ninguém diria que uma faísca de fogo os havia cozido por dentro. O colchão e a borda das telhas ficaram enegreci- dos, Nico foi até lá e se deu conta do embate entre luz e carne. Antônio abriu os olhos, em choque. Júlia estava alerta, mas não se mexia, não levantou a pálpebra, Nico a deu por morta. [...]

Andréa Del Fuego, Os Malaquias, 2012, Porto Editora, pp. 11-12
Ver:
- o vídeo, da série «Ler mais ler melhor», de 08 de Maio de 2012, em que a autora explica a «génese e a carpintaria» do Livro: no ARQUIVO RTP